INTRODUÇÃO
Diante de uma visão ampla, existe um grande problema de saneamento nas áreas rurais brasileiras, o que impacta, principalmente, a agricultura familiar. A falta de saneamento tem como justificativa, parcialmente, porque os domicílios em áreas rurais são mais dispersos entre si do que nas áreas urbanas. Baixas concentrações de residências em uma mesma área dificultam a distribuição do saneamento básico. Além disso, há a escassez hídrica, personagem principal na discussão sobre o uso adequado dos recursos naturais. A Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) traz a definição de água como um recurso natural limitado e dotado de valor econômico (Brasil, 1997). A necessidade de água potável e a tensão gerada pelas suas demandas de uso definem a questão hídrica no Brasil.
Ao se falar das problemáticas em torno do saneamento, é importante a classificação do efluente doméstico. Sua classificação se dá da seguinte forma: i) Águas cinzas: é o efluente proveniente de atividades domésticas, como tomar banho, lavar louça e roupa. Corresponde entre 50-80% do efluente residencial e recebe esse nome devido à sua aparência turva, uma vez que apresenta resíduos de alimentos e produtos químicos, como detergentes; ii) Águas negras: é o efluente proveniente dos vasos sanitários, por isso apresenta alta concentração de matéria orgânica e microrganismos patogênicos, que se não tratados corretamente, prejudicam não só a saúde humana e animal, mas também o meio ambiente como um todo.
Como a composição das águas cinzas é simples, uma vez que não apresenta tantos componentes prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, o seu tratamento também é relativamente mais simples, para isso, é possível citar as tecnologias sociais (TS) como uma possível solução para a questão do saneamento e escassez hídrica em assentamentos rurais. Uma das principais características das TS é a fácil adaptação dela por parte da comunidade. Seus instrumentos de realização (como equipamentos, técnicas e metodologia) fazem parte do cotidiano daquele que se beneficia, sendo capaz de operar, consertar, replicar e implantar de modo independente.
As TS, de uma forma geral, para sua replicação e utilização como política pública, dependem de todo um processo para construir o conhecimento e empoderamento de quem irá se beneficiar por elas. Dessa forma, para que haja a efetivação dessa estratégia, a ação de extensão em comunidades rurais ou isoladas, difusas ou concentradas, deve ser bem realizada e em conjunto com os impactados diretamente.
Dessa forma podemos concluir que as tecnologias sociais são uma forma consideravelmente efetiva para buscar a melhora da problemática do saneamento em áreas rurais e a escassez hídrica. Dentre os sistemas que podem servir de tratamento das águas cinzas diante dessa situação, destacamos o círculo de bananeiras, o sistema alagado construído e o vermifiltro.
UNIDADES DE TRATAMENTO
2.1. Círculo de bananeiras
Esta técnica originou-se da observação dos efeitos dos fortes ventos sobre a cultura dos cocos. Em uma clareira nasciam círculos de coqueiros que se desenvolviam melhor que os coqueiros que cresciam sós. No centro do círculo se depositavam folhas, ramos e frutos, que retinham a umidade e concentravam nutrientes, beneficiando a cultura ao seu redor. A partir daí foram feitas experiências com outras culturas, como a da banana. Como as bananeiras possuem folhas largas, elas evaporam grandes quantidades de água. Dessa forma, foi ligada a necessidade de se tratar as águas cinzas com a grande capacidade de evaporação dos círculos de bananeiras, além do favorecimento no desenvolvimento da cultura. Pelo fato de os microorganismos não contaminarem o interior dos tecidos e frutos das plantas, as bananas do círculo podem ser consumidas, o que ainda acrescenta mais um benefício ao sistema. Ao redor do círculo, também é indicado o plantio de mais plantas de folha larga como a taioba, mamoeiro, batata doce e plantas ornamentais, como o copo de leite e papiros.
Imagem 1 - Esquema do círculo de bananeiras.
Para sua construção, escava-se um buraco em forma de concha, com cerca de 2,0 m de diâmetro e 0,80m de profundidade. A terra retirada do buraco é colocada na borda de cerca de 30 centímetros de altura, formando uma barreira de proteção para que o escoamento superficial da chuva não seja encaminhado para o buraco, além de impedir que o esgoto transborde em momentos de grandes descargas de água.
Esse tipo de sistema não deve ser impermeabilizado, pois conta com infiltração de água no solo como parte do processo. Se o solo for muito arenoso deve-se adicionar uma camada de argila para retardar a infiltração e possibilitar a sobrevivência de microorganismos, que têm o papel de quebrar as moléculas dos nutrientes e outros compostos que vem com a água.
O buraco deve ser preenchido com madeira e palha para criar um ambiente adequado para o recebimento da água cinza e para beneficiar a micro vida. Isso é feito primeiro colocando pequenos troncos de madeira grossos no fundo, seguido de galhos médios e finos de árvores, e por último a palha (aparas de capim, folhas das próprias bananeiras, poda de árvores...) formando um monte com quase 1 metro de altura acima da borda do buraco. A madeira deve ser colocada de forma desarrumada, para que se criem espaços para a água. A palha tem a função de impedir a entrada da luz e da água da chuva, que escorrerá para os lados, de forma a não inundar o buraco e não se contaminar com a água cinza. A água cinza deve ser conduzida por um tubo até o buraco e com um joelho na ponta para evitar o entupimento. Não se devem usar canais abertos para a condução da água, o que poderia atrair vetores.
Um círculo costuma ser suficiente para uma família de 3 a 5 pessoas, mas se o volume de água cinza produzido na casa for maior do que a capacidade de recebimento do círculo, deve-se interligar um segundo círculo ao primeiro por meio de um cano. Não se deve fazer bacias maiores que o padrão.
O manejo é feito colocando frequentemente aparas de poda (grama, capim, galhos) no centro para alimentar o círculo. Além disso, após colher o cacho de bananas, deve-se cortar a bananeira bem na base e em pedaços, rachar ao meio e colocar no centro do círculo. A cada 3 anos (ou mais, dependendo de quando os troncos se dissolverem) todo o material depositado no buraco pode ser retirado e utilizado como adubo orgânico. Depois deve-se repor um novo material como foi feito no início da implantação do círculo.
2.2. Sistemas alagados construídos (SACs)
A falta de infraestrutura aliada à falta de planejamento na área de saneamento básico é um fator preocupante para a saúde pública, qualidade de vida e degradação do meio ambiente. Essa situação se agrava em áreas rurais, tendo em vista o alto custo de instalação e manutenção de sistemas convencionais.
Desse modo, os sistemas alagados construídos (SAC), também conhecidos como wetlands ou jardins filtrantes, são considerados uma excelente alternativa para o tratamento de águas cinzas em zonas rurais, pois sua implantação e manutenção são de baixo custo, além de serem fácil de operar, quando comparados com sistemas convencionais.
Os sistemas alagados construídos variam de acordo com a água a ser tratada, a vegetação utilizada e ainda com a direção de fluxo do efluente. No caso de águas cinzas residenciais, pode ser utilizado o sistema subsuperficial, em que o tratamento é feito de cima para baixo em fluxo vertical descendente, sendo sua estrutura composta por valas com paredes e fundo impermeabilizados que permitem seu alagamento com o efluente a ser tratado. As valas são pouco profundas e possuem plantas aquáticas ou macrófitas, que atuam na remoção de poluentes e ainda promovem a fixação de microorganismos que degradam a matéria orgânica. Normalmente, o SAC possui um material particulado como areia, brita e outros em seu interior, funcionando como meio suporte para o crescimento das plantas e microrganismos.
A imagem abaixo ilustra a estrutura de um sistema alagado construído subsuperficial:
Imagem 2 - Esquema do sistema alagado construído.
De maneira geral, para os sistemas de fluxo subsuperficial, é importante que o efluente passe por um tratamento primário antes de chegar ao SAC, como por exemplo por uma simples sedimentação (tanques sépticos) a fim de evitar uma carga de sólidos em suspensão excessiva que possa provocar o entupimento do espaço entre as rochas e interferir na capacidade de filtração e depuração do efluente.
Mesmo com baixo custo de implantação, o sistema alagado construído se mostra bastante eficiente, pois através de mecanismos físicos, químicos e biológicos como filtração, sedimentação, precipitação, decomposição e atuação dos metabolismos microbianos e das plantas, ele é capaz de diminuir ou remover poluentes orgânicos, inorgânicos e até mesmo patógenos. Sendo assim, ele promove a redução de parâmetros como a turbidez, sólidos em suspensão, traços de metais e organismos patogênicos presentes nas águas residuárias.
Além dos processos supracitados que ocorrem simultaneamente no sistema, essa tecnologia se destaca por utilizar a vegetação como um de seus principais elementos em que sua zona de raiz atua na remoção de poluentes e ainda contribui com a paisagem do local. Uma macrófita comum de ser utilizada nesse tipo de sistema é a Zantedeschia aethiopica, conhecida popularmente como copo-de-leite que se adapta facilmente ao ambiente.
2.3. Vermifiltro
O vermifiltro, também conhecido como vermidigestor ou lumbrifiltro, é um sistema de tratamento aeróbio composto por um dispositivo disposto em duas partes, sendo elas: a primeira composta por material orgânico e a segunda composta por materiais filtrantes de diferentes granulometrias, por exemplo, a brita.
A primeira camada é constituída por materiais orgânicos que devem ser, preferencialmente, subprodutos da agroindústria ou resíduos agrícolas, como: casca de arroz, bagaço de cana-de-açúcar, sabugo de milho, serragem de madeira, casca de coco, entre outros. A preferência por esses materiais se dá pela disposição em áreas agroindustriais. A primeira camada também é constituída por minhocas que atuam realizando a degradação da matéria orgânica e com isso produzindo húmus.
As minhocas mais utilizadas são as californianas, da espécie Eisenia andrei e Eisenia fetida, uma vez que se alimentam de uma parte do material orgânico e assim proporcionam uma aeração natural no meio, além de auxiliar na formação de comunidades de microorganismos, os principais decompositores durante o processo.
A umidade do meio é um fator determinante para a sobrevivência das minhocas, pois preferencialmente, preferem solos úmidos, porosos, nitrogenados, ligeiramente alcalinos e que contenham reservas de nutrientes como seu habitat natural. O húmus (ou vermicomposto) produzido pelas minhocas é o resultado da transformação da matéria orgânica ingerida pelas mesmas, se tratando de um composto inodoro, macio, livre de contaminantes e rico em nutrientes assimiláveis pelas plantas, por isso deve ser retirado manualmente.
O vermifiltro é uma alternativa para o tratamento de águas residuárias domésticas e industriais, desde que produzidas em pequena e média escala. Apresenta algumas vantagens, como: a inexistência da emissão de odores; o baixo custo de instalação e operação, uma vez que a manutenção não será frequente.
Trata-se de um tratamento de águas residuárias completo, uma vez que não necessita de um tratamento primário, secundário e terceiro; além de não ocorrer formação de lodos, uma vez que toda a matéria orgânica é consumida e transformada em material húmico. O sistema não se impermeabiliza devido à ação das minhocas que ficam em constante movimento, “perfurando” o material e permitindo a passagem do efluente. Variações de pH e temperatura não afetam a eficiência do tratamento, além de suportar precipitações e alta incidência de luz solar.
Quanto à sua eficiência, temos: 95% de remoção de DQO, 80% de remoção de sólidos suspensos totais (SST) e 70% de remoção de nitrogênio e fósforo.
Imagem 3 - Esquema do vermifiltro.
REFERÊNCIAS
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