INTRODUÇÃO
Em um relatório publicado em 1998, a OMS (Organização Mundial de Saúde) avaliou que os cemitérios devem ser tratados como potencial risco para o meio ambiente e a saúde pública. No estudo, diversos pesquisadores analisaram necrópoles em nações da Europa, onde foi corroborada a presença de bactérias patogênicas e poluentes originárias de túmulos que impactavam a população vizinha (Declercq, 2021).
No Brasil, os problemas oriundos de cemitérios são objetos de estudos desde a década de 70. Inúmeras análises já evidenciaram que pessoas que moram e/ou trabalham próximas desses locais podem ser acometidas de doenças resultantes de bactérias e vírus presentes em águas contaminadas por necrochorume (Declercq, 2021).
Considerando que a maioria dos cemitérios foram edificados sem um estudo prévio do terreno, a disseminação irregular do necrochorume faz com que ele percola no solo, contaminando as águas subterrâneas, nascentes e poços artesianos. Isso pode acarretar diversas doenças nos indivíduos que fazem uso dessa água como a febre tifóide, vômito, dores, diarreia, tétano, entre outros (Declercq, 2021). Conforme a Figura 1, é necessário realizar o gerenciamento do necrochorume a fim de evitar danos ao meio ambiente (SILVA, RODRIGUES e OLIVEIRA, 2012).
Figura 1 - Contaminação por necrochorume no aquífero freático.
Fonte: Leite (2009, p. 135).
NECROCHORUME
A decomposição do corpo compreende a fase de liberação do líquido humoroso, com aparência viscosa, de cor castanho acinzentada e com cheiro forte, mais conhecido como necrochorume (Declercq, 2021). Essa fase, conhecida como humorosa ou coliquativa, inclui a excreção de água, sais minerais e patógenos, como vírus e bactérias, pelo cadáver. De acordo com Pacheco et. al., (1997), cada corpo decomposto libera até 40 litros de chorume em um período de 2 anos, a depender das condições.
Figura 2 - Ilustração de uma área contaminada por necrochorume.
Fonte: Google Imagens.
No Brasil, a contaminação por necrochorume já é uma realidade, tendo em vista que grande parte dos cemitérios foram construídos sem uma avaliação prévia do terreno, como mostra os estudos desenvolvidos em Santa Inês, ES por Neira (2008) e em Salvador, BA por Dos Santos (2015). Os estudos mostram que há ausência de cuidados sanitários e higiênicos nos cemitérios, além da falta de segurança para os próprios funcionários do local que não possuem os equipamentos de proteção adequados.
Com a pandemia da covid-19 essa problemática se tornou mais evidente, devido ao alto número de mortes em pouco tempo. Muitas cidades não tinham espaços suficientes em seus cemitérios e tiveram que abrir valas comunitárias para o sepultamento de diversos corpos juntos, sem tomar os devidos cuidados ambientais. Fernando Augusto Saraiva, Mestre e Doutor em Geologia e Geofísica aplicadas e pesquisador no Instituto de Geociências da USP explica que o volume de necrochorume esperado ao longo de um ano era atingido quase que diariamente com mais de mil pessoas morrendo por dia em cidades como São Paulo (Declercq, 2021).
CONTAMINAÇÃO DO MEIO AMBIENTE
Segundo Almeida e Macedo (2005), a decomposição das substâncias orgânicas do corpo pode gerar amônio, uma substância que apresenta toxicidade em altas concentrações. Os patógenos e substâncias liberadas pelo organismo em decomposição podem penetrar o solo e atingir os lençóis freáticos contaminando a água consumida pela população local, caso não haja nenhuma medida mitigadora ou de prevenção.
O nível de contaminação vai depender do tipo de solo e de características suas e da substância, como a composição, densidade e condutividade hidráulica. A exemplo do contaminante em questão, sua densidade favorece a infiltração até atingir os aquíferos subterrâneos, por outro lado, solos argilosos atenuam o movimento de percolação devido a maior existência de microorganismos aeróbios que degradam o necrochorume (Carneiro, 2009).
A contaminação do solo é um problema mais local, podendo ser mitigada e contida se as ações necessárias forem tomadas com antecedência. Com a contaminação das águas subterrâneas o problema se agrava visto que, a água carrega os contaminantes para locais mais distantes, comprometendo todo o manancial, tornando a água imprópria para consumo humano devido a presença de vírus e bactérias (Carneiro, 2009).
Um estudo promovido por Pacheco em 1991 em três cemitérios situados em São Paulo e Santos - Brasil identificou a contaminação do aquífero subterrâneo por bactérias como coliformes totais, estreptococos fecais e clostridios sulfitos redutores. No entanto, são os vírus que mais preocupam os ambientalistas devido a sua grande capacidade de sobrevivência, mobilidade, adaptação e mutação (Carneiro, 2009).
Silva (2011), identificou que 70% dos cemitérios públicos brasileiros possuem problemas ambientais e sanitários, iniciando com a proliferação de animais vetores de doenças na superfície até o subsolo. Um outro problema levantado por Silva é que, diferente dos aterros sanitários que quando saturados são desativados, nos cemitérios as ossadas são removidas e as covas reutilizadas logo, servem como uma fonte inesgotável de contaminantes.
EXEMPLOS DE ESTUDOS QUE COMPROVARAM A CONTAMINAÇÃO DA ÁGUA POR NECROCHORUME
Em uma análise realizada no cemitério no município de Vila Velha – ES, constatou-se que a presença de cálcio oriundo da decomposição dos ossos, permaneceu dentro dos valores permitidos. A cor apresentou-se elevada, que acontece quando ácidos húmicos são adicionados à água natural e sendo um indicativo de possível contribuição de matéria orgânica no local de análise. O nitrogênio amoniacal encontrado foi alto, podendo ser justificado pela presença de um lixão próximo a um ponto de coleta. Com relação ao nitrato e nitrito, foram encontrados valores além do permitido pela CONAMA 335 de 3 de abril de 2003, evidenciando a contaminação do local tendo como origem o necrochorume. Na pesquisa foi observado um nível de pH próximo de 5, o que caracteriza a amostra de água como ácida, evidenciando a possibilidade de contaminação pelo cemitério. A turbidez apresentou um teor elevado, o que se justifica pela lixiviação da matéria orgânica e de outras substâncias da água percolados pelo solo, tendo como origem os sepultamentos em cova rasa (NEIRA et al., 2008).
Outra pesquisa realizada pelos autores Luz, Morales e Maia (2019), em um cemitério no município de Itacoatiara-AM, verificou-se que a estrutura do cemitério não é capaz de conter a percolação do necrochorume incidente no local. Fato preocupante encontrado no local foi o limite operacional do cemitério excedido, o que aumenta o risco de excessiva produção de necrochorume e contaminação das reservas subterrâneas de água. Em três amostras de água retiradas em um ponto de coleta próximo ao cemitério foi detectada a presença das aminas 23 putrescina e cadaverina. Concluindo o estudo, foi possível afirmar que a água coletada no entorno do cemitério encontra-se sobre a influência do necrochorume oriundo do cemitério.
Já Viana et al. (2019), verificando as amostras de águas subterrâneas no entorno de um cemitério em João Pessoa - PB, constatou que os valores de pH ácido, em torno de 5, confirma a presença de bactérias patogênicas, além dos parâmetros potencial hidrogeniônico e coliforme termotolerantes que apresentaram valores acima do permitido para a potabilidade da água.
EFEITOS NA SAÚDE PÚBLICA
Não é novidade que para efeitos de contaminação a parcela da população mais afetada é sempre a mais pobre, localizadas em áreas sem a devida estrutura necessária e sem acesso a água tratada e saneamento básico, dependendo dos poços e rios para conseguirem água. No entanto, toda a sociedade sofre quando o ambiente está contaminado.
A proliferação de doenças é um grande agravante da contaminação podendo levar ao surgimento de fortes epidemias nas regiões próximas. Outros problemas são as metahemoglobinemia, malformações congênitas e cânceres gastrointestinais devido ao consumo da água contaminada (Hino, 2015).
Um caso histórico de contaminação por necrochorume ocorreu na Europa como a epidemia de febre tifóide em Berlim na Alemanha entre 1863 e 1867, doença de origem bacteriana causada pela Salmonella entérica e está associada ao baixo índice de saneamento e ingestão de águas contaminadas (Oliveira, 2021).
A exemplo do coronavírus, ocorreu o agravamento do processo de contaminação e proliferação do vírus no ambiente das necrópoles. Apesar de não se saber ao certo quanto tempo o vírus permanece no corpo humano após a morte, a transmissão e contaminação é uma realidade (Azarias, 2021). Portanto, entende-se que o necrochorume é um perigo para o meio ambiente e para a saúde pública.
MÉTODOS DE CONTROLE
Os métodos de controle tradicionais consistem em: Filtros biológicos; Mantas absorventes e Pastilhas.
Conforme a Resolução CONAMA 335/03, mais precisamente em seu art.8°, a instalação de filtros biológicos tem-se maior aplicabilidade em cemitérios do tipo Parque. Além disso, é aplicado uma manta impermeabilizante logo abaixo dos túmulos, a fim de evitar-se a contaminação de águas subterrâneas.
A manta deve ficar no local por um tempo variável correspondente ao período da decomposição do cadáver, segundo suas características físicas entre 3 a 5 anos. Sua ação consiste na presença da camada de celulose em pó com função absorvente. Ao entrar em contato com o líquido, essa faixa se transforma em uma espécie de gel retendo o necrochorume.
O único método com ação direta junto ao cadáver é a pastilha, composta por uma mescla de bactérias singulares sintetizadas em esporos agrupados consumindo a matéria orgânica presente.
Além disso, a Resolução CONAMA 368/06 recomenda a existência de uma distância entre o fundo da cova e o lençol freático, dependendo da permeabilidade do solo. Para auxiliar na retenção dos contaminantes do chorume, podem ser plantadas árvores que retêm microrganismos e consomem o excesso de matéria orgânica que chega ao meio (LEGNER, 2022).
A distância até o nível da água, a chamada zona não saturada, auxilia na degradação dos vírus e bactérias. Sua ação se dá através dos microrganismos naturais do solo, pela absorção, pela ação das raízes das árvores e pela absorção das partículas existentes nesse terreno. Quanto maior esta distância, mais tempo o necrochorume permanecerá no solo e assim será mais degradado (LEGNER, 2022).
Outra questão importante é a diferença de altitude entre o cemitério e a área circundante. Ele nunca deve ser localizado na parte mais baixa de uma área, para onde as águas pluviais convergem. A água potencializa a velocidade de infiltração do necrochorume pelo solo e com isso reduzindo o seu potencial de degradação (LEGNER, 2022).
A cremação também é uma solução possível, mas a cultura brasileira ainda opta pelo sepultamento, mesmo o primeiro processo sendo muito mais barato. Um destino criativo e sustentável para as cinzas é a Bio Urna. A urna é feita de fibra de casca de coco e com uma porção de turfa compactada e sementes no seu interior. As cinzas da cremação são depositadas nela e funcionam como um adubo orgânico para a planta (LEGNER, 2022).
Figura 3 - Bio urna, destino criativo e sustentável para as cinzas.
Fonte: Urnas de Angeli.
REFERÊNCIAS
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Azarias, V.; Pusceddu, L.(2021) Covid-19 e Necrochorume.
CARNEIRO, Victor Santos. Impactos causados por necrochorume de cemitérios: meio ambiente e saúde pública. Águas subterrâneas, 2009.
COUTO, José Luiz Viana do. Necrochorume e Água de Beber. Disponível em: https://agronomos.ning.com/profiles/blogs/necrochorume-e-gua-de-beber. Acesso em: 25 maio 2022.
Declercq, Marie. “Necrochorume: como o alto número de enterros pode impactar o meio ambiente.” UOL TAB, 3 April 2021.
DOS SANTOS, Aline Gomes da Silva; MORAES, Luiz Roberto Santos; DE MORAIS NASCIMENTO, Sérgio Sérgio Augusto. Qualidade da água subterrânea e necrochorume no entorno do Cemitério do Campo Santo em Salvador/BA. Revista eletrônica de gestão e tecnologias ambientais, v. 3, n. 1, p. 39-60, 2015.
HINO, Tochine Miguel. O necrochorume e a gestão ambiental dos cemitérios. Revista Especialize On-line IPOG-Goiânia-Edição, n. 10, 2015.
LEGNER, Carla. Problemas, Cuidados E Como Tratar O Necrochorume. Disponível em:https://www.revistatae.com.br/Artigo/8/problemas-cuidados-e-como-tratar-o-necroch orume. Acesso em: 25 maio 2022.
LEITE, E. B. Análise físico-quimica e bacteriológica da água de poços localizados próximo ao cemitério da comunidade de Santana, Ilha de Maré, Salvador-BA. Candombá, v. 5, p. 132-148, jul – dez, 2009.
LUZ, M. A. M. D.; MORALES, B. F.; MAIA, P. J. D. S. Contaminação das águas subterrâneas por cemitérios: influência do necrochorume na qualidade da água do entorno do cemitério divino espírito santo em Itacoatiara, Amazonas. ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, Itacoatiara, p. 1-10, 2019.
NEIRA, D. F. et al. Impactos do necrochorume nas águas subterrâneas do cemitério de Santa Inês, Espírito Santo, Brasil. Natureza On Line, Santa Teresa, v. 6, p. 36-41, 2008.
Oliveira, Marina dos Santos. Avaliação de impacto ambiental no cemitério da Saudade em Ouro Preto/MG: A problemática da contaminação por necrochorume frente à pandemia de COVID-19. [manuscrito] / Marina dos Santos Oliveira. - 2021.
PACHECO, A.; MENDES, J. M. B.; MARTINS, T.; HASSUDA, S.; KIMMELMANN, A. A. Cemeteries – A Potencial Risk to Groundwater. Water Science Technology; vol. 24 (11), p. 97-104, 1991.
PACHECO, Alberto; et al. - O problema geo-ambiental da localização de cemitérios em meio urbano. CEPAS, nov. 1997.
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